Umberto Eco
Para que serve a literatura?
Eu poderia dizer que ela não serve para nada, mas uma visão tão crua do prazer literário corre o risco de igualar a literatura ao jogging ou às palavras cruzadas.
Existem poderes imateriais cujo peso não se pode medir, mas que ainda assim pesam.
E entre esses poderes eu incluiria também o da tradição literária, isto é, do complexo de textos que a humanidade produziu e produz, não com fins práticos, mas "gratia sui", por amor a si mesma, e que são lidos por prazer, elevação espiritual ou para ampliar os conhecimentos.
A literatura mantém a língua em exercício e, sobretudo, a mantém como patrimônio coletivo.
a prática literária também mantém em exercício nossa língua individual.
A leitura das obras literárias obriga a um exercício de fidelidade e de respeito dentro da liberdade de interpretação. Há uma perigosa heresia crítica, típica dos dias de hoje, segundo a qual é possível fazer qualquer coisa com uma obra literária. Não é verdade. As obras literárias convidam à liberdade de interpretação porque propõem um discurso com muitos planos de leitura, defrontando-nos com a ambiguidade da linguagem e da vida. Mas, para poder intervir nesse jogo, em que cada geração lê as obras literárias de um modo diferente, é preciso ter profundo respeito por aquilo que chamo a intenção do texto.
Saber se no final o fuzil disparou ou deixou de disparar não tem o simples valor de uma notícia.
É isso o que dizem todas as grandes histórias, sendo possível, em todo caso, substituir Deus pelo destino ou pelas leis inexoráveis da vida. A função das narrativas imodificáveis é justamente essa: contrariando nosso desejo de mudar o destino, nos fazem experimentar a impossibilidade de mudá-lo. E assim, que seja a história que elas contem, contarão também a nossa, e é por isso que as lemos e as amamos. Necessitamos de sua severa lição "repressiva". A narrativa hipertextual pode educar para o exercício da criatividade e da liberdade. Isso é bom, mas não é tudo. As histórias "já feitas" nos ensinam também a morrer.
Creio que essa educação para o fado e para a morte é uma das principais funções da literatura. Talvez existam outras, mas agora me escapam.
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